Como células humanas reagem à infecção por HIV?

Virginia Pierini tinha apenas seis anos quando pediu uma lupa de presente de aniversário. Ela queria ver de perto os insetos que viviam no jardim de sua casa. Desde pequena, sua curiosidade e entusiasmo para aprender coisas novas tem sido fortes motivações em sua vida. Já adulta, uma experiência pessoal a influenciou a se interessar por entidades ainda menores: vírus. “Durante meu tempo na universidade, biologia molecular humana se tornou a minha paixão e um estágio em um laboratório de uma organização não-governamental, que trabalha com crianças HIV-positivas, me inspirou a estudar HIV mais tarde”, conta Virginia.

A anatomia básica do HIV: a estrutura viral é composta de seu genoma e enzimas embaladas dentro de uma cápsula, que é ainda coberta por um envelope. Este envelope é composto pela membrana celular de onde o vírus foi produzido. https://en.wikipedia.org/wiki/Introduction_to_viruses

HIV (vírus da imunodeficiência humana) é um vírus que destrói células do nosso sistema imune. Este sistema protege nossos corpos de invasores, como microorganismos e toxinas. Na maioria das vezes, nossas respostas imunes são boas o suficiente, e logo nós nos recuperamos de infecções e intoxicações. Mas o HIV é um invasor astucioso. Este vírus não somente consegue desativar moléculas que tentam destruí-lo, mas seu código genético também muda com bastante frequência. Por outro lado, nosso sistema imune só é capaz de nos defender rapidamente contra algo com que ele já teve contato prévio. Se o HIV muda constantemente, isso faz com que a tarefa do nosso sistema de defesa se torne ainda mais difícil. Agora ele não nos protege contra outras infecções com a mesma eficiência. E isso torna o nosso corpo mais vulnerável à entrada de diferentes invasores, sejam eles bactérias, fungos ou outros vírus, e aos danos causados por eles. Virginia nos dá uma analogia: “imagine uma cidade rodeada por muros como proteção contra ataques externos. A cidade é o seu corpo. Um perigoso inimigo é o HIV (…). HIV atua como um avião de caça que voa em modo oculto. Ele atira nos muros da cidade e abre uma fenda, que permite que outros vírus conquistem e destruam a cidade”.

Então não é de se surpreender que a infecção por HIV é bastante custosa ao nosso organismo. E se não tratada, ela pode evoluir para a AIDS (síndrome da imunodeficiência adquirida), uma doença que ainda não tem cura. A cientista italiana enfatiza a importância de estudar o vírus e sua infecção: “HIV é uma ameaça à saúde pública, com 38 milhões de pessoas infectadas no mundo atualmente. Encontrar uma cura ou uma vacina é o objetivo final. Para alcançar tal objetivo, nós precisamos entender como o vírus funciona e como nosso corpo reage a ele.” Além disso, apesar da existência de tratamento antiviral, que é composto por remédios que diminuem a quantidade de vírus no corpo, 33% dos indivíduos infectados não tem acesso a esses medicamentos. Ainda assim, para os 67% dos que recebem a terapia, diferentes efeitos colaterais, como náusea, diarreia e dificuldade de dormir podem interferir na qualidade de vida, além de desencorajar os pacientes a se comprometerem com o tratamento. Portanto, novas maneiras de prevenir e tratar o HIV também são necessárias.

Partículas de HIV podem ser transmitidas de uma pessoa infectada para uma saudável através do sangue, leite materno, esperma e fluidos retais e vaginais. Quando o vírus consegue infectar indivíduos saudáveis, ele ataca células do nosso sistema imune. Estas células possuem marcações em sua superfície, as quais são identificadas pelo HIV. No momento em o vírus encontra uma destas células, a sua parte externa, chamada envelope, se fusiona com a membrana da célula. Isso permite que todo o conteúdo dentro do envelope viral vá para dentro da célula, liberando o acesso à maquinaria celular ao vírus. E isso é tudo o que o HIV queria: uma pequena fábrica para chamar de sua (a célula), onde ele pode fazer cópias de si mesmo, as quais são liberadas pro resto do corpo, permitindo que a infecção continue a todo vapor.  

Os sete estágios principais do ciclo de vida do HIV: 1) Quando o HIV ataca uma célula, o vírus se prende a moléculas na superfície da célula. 2) Após o HIV se prender a uma célula hospedeira, o envelope viral do HIV se funde com a membrana da célula. 3) Uma vez dentro de uma célula, o HIV libera e usa transcriptase reversa (uma enzima do HIV) para converter seu material genético – o RNA-HIV – em DNA do HIV. A conversão do RNA em DNA permite que o HIV entre no núcleo celular e se combine com o material genético da célula. 4) Uma vez dentro do núcleo da célula hospedeira, o HIV usa uma enzima para inserir seu DNA viral no DNA da célula hospedeira. 5) Uma vez integrado o HIV no DNA da célula hospedeira, o vírus começa a usar a célula para criar proteínas HIV, os blocos de construção para mais HIV. 6) Durante a montagem, o novo RNA do HIV e as proteínas do HIV feitas pela célula hospedeira se movem para a superfície da célula e juntas formam o HIV não-infeccioso. 7) Durante o surgimento, o HIV não infeccioso se empurra para fora da célula hospedeira. Uma vez fora da célula, o novo HIV usa uma enzima do HIV. Isto quebra as proteínas do vírus imaturo, criando o vírus infeccioso.
Informações e imagem extraídas do CLINICAL INFO.HIV.GOV.

Mas não é que o sistema imune deixe a infecção rolar livremente sem ao menos tentar lutar contra ela não. Em seu doutorado, Virgina estudou como uma proteína que existe em nosso organismo ajuda na luta contra o HIV. Geralmente, depois que uma infecção se instala, mais vírus deixam as células hospedeiras para infectar outras. No processo de saída da célula, explica Virginia, “estes novos vírus arrancam um pedaço da membrana celular que se torna parte do seu envelope [a parte externa do vírus]. ” Ela continua, “foi descoberto que uma proteína chamada SERINC5, que fica na parte da membrana externa de células humanas, pode ser levada pelos recém-produzidos vírus de HIV, na membrana de seu envelope. ” Esta proteína funcionaria como agentes secretos, que se infiltram nos aviões de caça HIV. Mas o que acontece com as partículas de vírus que acabam levando SERINC5 com elas? “Se algumas proteínas SERINC5 forem carregadas juntas com a membrana celular [se tornando parte do envelope viral], os vírus se tornam incapazes de entrar em outras células e de infectá-las. ”  Então é esta proteína o que alerta outras células a fim de evitar que mais células sejam infectadas? Esta foi a pergunta que Virginia investigou durante a sua pesquisa de doutorado.

No início de seu estudo, Virginia já sabia que SERINC5 auxiliava na proteção contra a infecção pelo HIV e que a proteína interferia na propagação viral. Porém não estava muito claro se a proteína poderia informar outras células quando o HIV estava se aproximando, “se os agentes secretos poderiam avisar a cidade, quando os aviões-caça chegassem, para que a cidade pudesse se defender,” explica Virginia. Então, em um artigo publicado neste ano, no qual Dra. Pierini é a primeira autora, ela e seus colegas observaram que “as células podem sentir a presença do vírus que possuem SERINC5 em seu envelope e contra-atacar secretando (…) moléculas, chamadas citocinas, que iniciam uma inflamação em resposta ao vírus”. Voltando à analogia da cidade contra os invasores, o artigo descreve “que os agentes secretos fazem com que os aviões-caça se tornem visíveis para a cidade, perdendo o seu voo de modo oculto e deixando claro que estão chegando. A cidade atira nos aviões-caça com suas armas, que são citocinas pró-inflamatórias, e estão entre as armas mais poderosas do nosso corpo contra invasores”.

Isso soa bastante promissor, não? Afinal, é como se o nosso corpo tivesse sua própria maneira de nos proteger contra o HIV. Já que não somente torna o vírus visível novamente para o nosso sistema imune, mas também inicia uma resposta inflamatória contra ele. Porém, por que é que o HIV gera uma infecção tão agressiva em humanos de toda forma? Uma razão para isto pode ser outra descoberta descrita no artigo de Pierini. “O HIV é muito esperto e perverso porque ele tem seus próprios soldados, proteínas virais chamadas Nef, (…) que expulsam os agentes secretos (SERINC5) dos aviões-caça antes que eles possam alertar a cidade que os vírus estão chegando”, ela esclarece.

Na luta entre nosso corpo e o HIV, nosso corpo é como uma cidade e o HIV é um inimigo perigoso, que age como um avião de combate que voa em modo oculto. Os aviões-caça do HIV disparam contra as muralhas da cidade e abrem fendas para permitir que outros invasores conquistem e destruam a cidade. Mas nossos corpos têm agentes especiais que se infiltram nos jatos de combate HIV, chamados SERINC5, que avisam a cidade sobre a chegada dos jatos. Como consequência, nosso corpo contra-ataca com bolas de fogo de citocinas, tentando controlar a invasão do HIV. Mas o HIV tem a ajuda de um de seus soldados, o fator de restrição Nef, para expulsar os agentes secretos do jato de caça, o que lhe permite continuar a invasão. Imagem de Virginia Pierini.

No entanto, ainda há muitas peças faltando para terminar o quebra-cabeça. Com seu trabalho, Virginia mostrou “que nosso corpo tem uma potente arma, SERINC5, contra o HIV, mas o vírus é ardiloso como uma raposa e encontrou uma maneira de superá-la”. Mas ela pondera, “SERINC5 não é a única arma, portanto nós precisamos continuar a estudar, para encontrar uma maneira de usar outras de nossas armas para derrotar o HIV. A vida de muitas pessoas corre risco por causa do HIV. Para que encontremos uma estratégia contra o vírus, nós precisamos de estudos como o meu para entedermos quais são as armas que temos ao nosso dispor e como HIV responde a elas.” Além disso, “não está claro como as células reconhecem partículas virais que carregam SERINC5. Quem sente os aviões-caça do HIV se aproximando à cidade? Quais componentes do avião são detectados, a fim de reconhecer que é, de fato, o HIV e não um jato de um aliado?”. Todas estas questões ficam em aberto para próximos estudos.

Gradualmente, mais estudos como o de Virginia vem nos ajudando a compreender melhor como a infecção por HIV funciona e como nossas células reagem a ela. Com esperança, vamos torcer para que em breve tenhamos melhores tratamentos e métodos preventivos, e eventualmente uma cura para todos aqueles aflingidos por este engenhoso vírus.

Dra. Pierini levou cinco anos e quatro meses para completar seus estudos de doutorado na Universidade de Heidelberg. Quando perguntada sobre o que a incentivou a iniciar e continuar seu projeto, ela respondeu “durante todo o meu doutorado, tentei não perder de vista a perspectiva de longo prazo da pesquisa básica que estava fazendo. O objetivo final é ajudar aqueles que vivem com HIV e sofrem por causa disso. Isto sempre me manteve motivada”. Além da ciência, em seu tempo livre, Virginia adora “viajar pelo mundo e aprender sobre outras culturas e culinárias”. Ela também gosta de dançar, ler e estudar a língua alemã.

Após completar seu doutorado, agora Virginia está trabalhando como pesquisadora de pós-doutorado na Universidade de Heidelberg. Você pode encontrar mais informações sobre a carreira dela aqui.

Muito obrigado, Virginia, por compartilhar seu trabalho e sua história conosco!

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