Em uma consulta de rotina com meu oftalmologista em 2015, ele me perguntou qual era a minha profissão. Uma pergunta normal para muitos, mas muito confusa para mim naquele momento. Àquela época, eu estava no meu primeiro ano do mestrado em Neurociências, cursando disciplinas de neurobiologia e trabalhando nos meus experimentos para a minha dissertação. Então, quando fui questionada a respeito da minha profissão, eu expliquei ao médico: “bem, eu trabalho em um laboratório de neurociências, mas eu também ainda sou estudante.” Ele anotou o que eu falei num formulário e começou a examinar meus olhos. Mais tarde, com este formulário em mãos, eu percebi que ele havia escrito “cientista” como minha profissão.
De acordo com o dicionário Cambridge, a definição da palavra “cientista” é: “um(a) especialista que estuda ou trabalha em uma das ciências.” Sendo assim, eu acho que, naquele momento, meu médico exagerou um pouco quando me definiu como cientista. Afinal, eu estava longe de ser considerada uma especialista em meu primeiro ano de mestrado. Porém, eu admito que, até hoje, fazendo doutorado e no caminho para me tornar uma especialista em minha área, eu ainda não consigo me definir como cientista. Eu não sei exatamente o porquê, mas eu desconfio que seja pela ideia de que tenho de um(a) cientista até hoje.
Provavelmente como muitas outras pessoas, se alguém me pedir para dizer a primeira pessoa que aparece em minha mente quando eu penso em um(a) cientista, o rosto de Albert Einstein estirando a língua é o primeiro que aparece. Um excêntrico homem branco, mais velho e europeu, que nada tem a ver comigo (exceto por ser humano e compartilhar da mesma cor da pele, não sei dizer quais outras características temos em comum). É difícil dizer quantas vezes Einstein e/ou sua foto apareceram na mídia e cultura popular. Mas este artigo da Wikipédia dá vários exemplos na televisão, literatura, arte visual, música e jogos. Então, não é surpreendente que, depois de ter visto seu rosto tantas vezes em minha vida, eu ainda penso automaticamente nele como minha primeira ideia de cientista.
Seu trabalho como cientista está fora de questionamento, ele realmente fez grande contribuições para sua área de pesquisa. Entretanto, o que eu gostaria de refletir agora é o porquê de eu pensar primeiro nele como cientista, antes mesmo de eu pensar em todos os cientistas que me cercam todos os dias (inclusive eu mesma…). Assim como no impacto que isso tem na minha autopercepção sobre minha profissão.
A grande mídia também não me ajuda a mudar minha concepção de como um cientista se parece. Um estudo brasileiro de 2019, que analisou o gênero de especialistas consultados no Jornal Nacional e no Fantástico, concluiu que cientistas homens foram entrevistados quase três vezes a mais do que cientistas mulheres. Um cenário semelhante foi observado em um estudo finlândes e um britânico, nos quais os autores perceberam que menos de 30% e 20%, respectivamente, dos entrevistados eram do gênero feminino.
Uma explicação para esta diferença pode ser que, de fato, hajam mais cientistas homens do que mulheres. No caso da Finlândia e do Reino Unido, esta pode ser uma das razões, já que somente 29% e 41% dos pesquisadores são mulheres nestes países, respectivamente, de acordo com o Eurostat. Mas esta não é a situação do Brasil. No censo de 2014 do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a proporção de pesquisadores em posições de liderança é equivalente.

E mesmo nos países onde há menos mulheres na ciência, a falta de cientistas do gênero feminino na mídia é uma consequência ou uma causa, sendo algo que desencoraja as mulheres a trabalharem como pesquisadoras? Eu não tenho uma explicação muito clara para esta pergunta. Mas eu ouso dizer que o fato de termos uma superrepresentação de cientistas do gênero masculino na grande mídia e na cultura popular certamente me influenciaram a ainda ter em mente um homem mais velho e branco como o primeiro exemplo de cientista que me vem à cabeça.
Eu preciso admitir, entretanto, que isso vem mudando para mim. Depois de ter ficado mais consciente deste problema e de perceber como isso influencia minha autopercepção e autoconfiança, eu comecei a buscar por mais referências femininas. E eu fiquei feliz em perceber que em uma das últimas vezes em que eu me perguntei “ como é que um(a) cientista se parece?”, Jennifer Doudna, que ganhou o Prêmio Nobel em Química ano passado, também me veio à mente. Não somente ela foi uma das cientistas que desenvolveu uma técnica de biologia molecular muito importante, que vem sendo usada no meu atual laboratório, ela também tem aparecido frequentemente na mídia desde que o artigo do seu grupo de pesquisa sobre esta técnica foi publicado.
Mas Jennifer Doudna, assim como Einstein, faz parte de um seleto grupo de cientistas que conseguiu ascender ao topo da academia e se tornou professor ou líder de pesquisa. A ciência, no entanto, é um trabalho em equipe. Junto a outras Doudnas e Einsteins, muitas outras pessoas contribuem para uma descoberta científica e o desenvolvimento de uma técnica. Entre estas, estão post-docs, doutorandos(as), mestrandos(as), alunos(as) de iniciação científica, técnicos(as) de laboratório, e por aí vai. Eles são, de uma forma ou de outra, os cientistas que colocam a mão na massa, as pessoas que de fato conduzem os experimentos e os planejam nos mínimos detalhes. Quando vemos as notícias de ciência, entretanto, geralmente somente os professores(as) ou líderes de pesquisa é quem são entrevistados. E lembra da superrepresentação de cientistas do gênero masculino que eu comentei acima? Tudo somado, e acabamos tendo uma ideia bastante enviesada de não somente como pesquisadores, mas também como professores e líderes de pesquisa, se parecem.
Ainda vai demorar até que finalmente tenhamos igualdade de gênero e diversidade racial na ciência e em outros setores da sociedade, mas precisamos reconhecer que há esforços crescentes para que cheguemos a este cenário, tanto dentro como fora da academia. No entanto, a mesma tendência precisa ocorrer na representação de cientistas na mídia e na cultura popular. Afinal, estes são os canais que informam o grande público sobre quem é que faz pesquisa. Se a maioria dos cientistas que aparece na mídia continuar a ser branca e masculina, aqueles que não se encaixam nestas categorias podem continuar pensando que não pertecem a este grupo, e pior, que nem tentem se tornar parte dele. Como consequência, muitas áreas de pesquisa que são importantes para a sociedade podem continuar a ser negligenciadas devido à ausência de diferentes perspectivas, que são trazidas pela diversidade.
Portanto, motivada por vários(as) grandes cientistas que eu acredito que deveriam ter suas vozes ouvidas, e inspirada pelas campanhas #ILookLikeAScientist e #EuPareçoCientista, as quais tentaram quebrar o esteriótipo de pesquisador homem, branco e mais velho mostrando mais diversidade entre cientistas, eu decidi criar este blog. Aqui, meu objetivo é ser um canal para os cientistas que colocam a mão na massa a contar suas próprias histórias e suas contribuições para a ciência, e mostrar uma realidade mais diversa de como cientistas, de fato, são.
Genial, Carol!! Ótima iniciativa!
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Poxa, que legal. Trabalhando como jornalista (meio que do outro lado da equação), eu percebo que boa parte da sub representação de mulheres cientistas na imprensa é – exatamente como você escreveu – resultado da imagem que temos do cientista homem, branco e velho. Mesmo com o avanço de pautas da representação feminina e negra na sociedade, é um problema que continua. Acho que por ser algo tão enraizado na nossa cultura, nós, jornalistas, não conseguimos enxergar isso de forma diferente. Dito isso, parabéns pela iniciativa do blog, acho que é um bom canal para ajudar a mudar essa realidade.
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Muito bom, Carol! Longa vida ao seu blog ♥️
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